carneiro2

carneiro2

sábado, 11 de outubro de 2014

“PODE VESTIR A FARDA” Etnografia da entrada dos novos alunos do Colégio Militar do Rio de Janeiro (CMRJ)

(Dando prosseguimento à pesquisa e iniciando o trabalho mais propriamente etnográfico, publico a seguir uma primeira aproximação que se refere à cerimônia de entrada dos novos alunos, considerando suas duas partes: a entrada dos novos alunos propriamente dita e a entrega da boina garança)


1.    Introdução

Ainda que não sendo membros das Forças Armadas, os alunos dos Colégios Militares trajam uniformes (fardas) e deles são esperados comportamentos típicos dos profissionais da caserna. Não só estas vestes – privativas de um segmento específico da sociedade – devem ser utilizadas segundo rígidos cuidados quanto à uniformidade, não sendo permitidas, portanto, personalizações ou variações frente ao que está instituído sobre elas, como, também, é esperado pelo Exército um zelo igualmente característico no uso cotidiano da farda e de seus complementos.
  
Este cuidado com a boa apresentação – estando definido, em instrumentos legais[1], o próprio entendimento do que seja a “boa apresentação” – é um traço valorizado do comportamento castrense, tido como uma exteriorização do amor pela instituição a qual serve o militar.

Penso, estipulando desde já um fio condutor para essa pequena experiência etnográfica, no caráter metonímico dessa relação para com a vestimenta: o amor à farda representa o amor à Instituição (Exército Brasileiro). Em contrapartida, o desleixo – incluindo-se nesta categoria, muitas vezes, não só o descuido com a higiene e o asseio pessoais, mas os usos desviantes à norma das peças do uniforme – ofende diretamente a instituição, é um ultraje que, mediado pelos profissionais das Armas, aponta contra o próprio Exército.

Mais do que vestido, então, o militar se encontra fardado: podemos dizer que investido da própria Instituição da qual faz parte, não por um uso qualquer daquelas vestes privativas, mas por um uso regulado, uniformizado e fiscalizado dos uniformes[2].

À semelhança dos profissionais, os alunos dos Colégios Militares devem fazer jus ao direito de envergar o fardamento, porque é o direito mesmo de pertencer à instituição militar. Sendo um círculo fechado, um segmento que se define, muitas vezes, não apenas pela distinção, mas pela negação / oposição ao meio civil, o meio militar, em todas as escolas de formação que servem de entrada à profissão, marca bem o instante em que admite os novos profissionais. Nestas ocasiões, sempre cerimoniosas, fica clara a adesão, a passagem, a conquista para aqueles que deixam alguma coisa para trás, porque passam a ser militares.

Seguindo a mesma intenção, aqueles que fazem parte do Exército, ao concluírem cursos – se especializando ou aperfeiçoando – conquistam o direito de ostentar identificações particulares, símbolos adicionais no fardamento, distinções dentro das distinções: são os brevês que recortam os profissionais do segmento a que estavam circunscritos, particularizando-os ainda mais. Por exemplo: oficiais que cursaram a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), vindo a se especializar com o Curso Básico Paraquedista, alcançarão o direito de apor na camisa dos uniformes (à direita, sobre o bolso) o brevê por meio do qual serão reconhecidos como paraquedistas do Exército. A farda, neste caso, enuncia uma distinção dentro da distinção; e o direito a pertencer ao grupo seleto, à fração menor recortada do segmento primeiro, é conquistado com esforço e formalizado em cerimônia que marca o rito de passagem.

Para os Colégios Militares em geral – e para o CRMJ em particular, no que ele me interessa para a investigação em curso – o rito de passagem por meio do qual os novos alunos são incorporados, não só ao Colégio, mas, metonimicamente, ao Exército Brasileiro, se divide em duas partes, que serão tratadas neste trabalho. A primeira delas, a entrada dos novos alunos propriamente dita; e a segunda, a entrega da boina garança[3].

2.    O lugar como história: topografia do CMRJ com a contribuição de Berque  

Tomo como necessária a descrição, em primeiro lugar, do CMRJ em sua disposição no terreno, na maneira pela qual ele interferiu na paisagem. Mais do que uma vista ao mapa, do que uma apresentação da topografia sobre a qual se desdobram ruas, pavilhões, praças e outras edificações, é necessário ver o Colégio em sua estreita e muito particular relação com esse meio físico. Porque é uma característica do modo pelo qual o Exército Brasileiro se instala, fisicamente, sobre um território, um “tomar posse” não norteado, exclusivamente, pela racionalidade, pela busca do uso ótimo do espaço, mas muito preocupado com o transplante, para o terreno, da história, dos valores e dos costumes daqueles que chegam para ocupá-lo.

O “uso ótimo” que aludo acima, seria aquela busca de adequação entre as funcionalidades oferecidas pelo espaço e as necessidades daqueles que o ocupam; o levantamento das dificuldades e dos obstáculos decorrentes da ocupação, para buscar a superação dos mesmos. Ainda que este “uso ótimo” não seja preterido, ele não explica, em última análise, o design de um aquartelamento depois que sua instalação se estabiliza, depois que ela passa a existir no cotidiano de uma região qualquer. Porque – e principalmente naquelas instalações militares destinadas à função de escolas de formação –, em um quartel, os espaços recebem nomes que remetem a fatos e personalidades históricas; as cores das pinturas aludem a eventos memoráveis; mensagens em verso e prosa redigidas em muros concitam a ações e comportamentos.

A Instituição busca se materializar no terreno, segundo este caráter metonímico que escolhi como fio condutor do presente trabalho; cada militar, vestido e investido da carreira das Armas, é uma materialização do próprio Exército; cada quartel, naquilo que instala para além da justificativa funcional, é uma materialização do todo institucional[4].

Porque o vínculo dos militares para com o espaço que ocupam tem a ver com o compromisso firmado por nós, profissionais, em relação à Pátria que juramos defender. As escolas de formação trabalham intensamente na reprodução dessa identidade do grupo, e, para entendê-la, se faz necessário investigar a relação dos militares com o espaço.

Este preâmbulo se faz necessário para justificar que a descrição física do CMRJ deva ser mais que a apresentação de um mapa: ela deve ser a leitura de uma história. A história orgulhosamente contada, não só na ocupação topográfica, mas no adereçamento, na montagem que os militares – os personagens da história que se quer contar – fazem em suas fardas[5].

Para seguir este entendimento, se faz fundamental o aporte teórico de BERQUE (2008), em primeiro lugar, quanto à distinção que este autor faz entre dois pontos de vista sobre a “paisagem”: no primeiro, ela é objetivada, “sempre esteve aí” – o ponto de vista das ciências naturais. No segundo, subjetivada, criada a partir da representação humana – o ponto de vista sendo o próprio princípio desta paisagem.

Acompanhando as duas concepções, o autor propõe dois tipos de pensamento. O primeiro, o que vem antes na história do Homem, seria um “pensée paysagère”, o qual se poderia traduzir, ainda que de forma menos precisa, para um “pensamento paisageiro”, um que transforma, que interfere com a paisagem sem distingui-la da própria pessoa, sem reificá-la. Um pensamento integrado. O segundo, um “pensée du paysage”, “pensamento sobre a paisagem”, esse, com o qual estamos mais familiarizados, é o pensamento moderno, o pensamento utilitário, dicotômico, de quem é capaz de olhar para uma natureza fora de si, apartada e coisificada.

Para BERQUE (2008) os dois pensamentos, ainda que distintos, não são totalmente isolados um do outro. O Homem começa a pensar sobre a paisagem a partir do momento em que começa a representá-la (com palavras e imagens), e isso se dá, para o mundo europeu, a partir da Renascença. A representação pictórica ganha muito com o conjunto de noções sobre perspectiva: é quando a pintura passa a se apropriar da paisagem, permitindo que se tematize ou se intervenha sobre ela, estando-se apartado dela. É aí que a cultura passa a ter uma concepção sobre a paisagem.

Formalizando mais os âmbitos dos dois tipos de pensamento, o autor relaciona seis critérios para o discernimento da existência (ou não) de uma concepção de paisagem (MARIA, 2010, p.22-23):
 
“1. Um literatura (oral ou escrita) contando a beleza dos lugares; o que inclui a toponímia.
2. Jardins de recreio.
3. Uma arquitetura organizada para se apreciar uma bela vista.
4. Pinturas representando o ambiente.
5. Uma ou mais palavras para dizer ‘paisagem’.
6. Uma reflexão explícita sobre ‘a paisagem’”.
Somente a partir do atendimento de todos esses critérios é que determinada sociedade terá passado de uma relação una, indivisa, não-dicotômica, com a natureza ao seu redor, para outra relação, essa objetivada, uma relação de posse[6].

 Aprofundando, um pouco mais, a compreensão da não-obviedade do conceito de paisagem – o que é seminal para o entendimento que pretendo construir quanto à relação dos militares com o entorno que ocupam –, chegamos ao aporte de outra autora fundamental:
 
“Há algo como uma crença comum em uma naturalidade da paisagem, crença bem arraigada e difícil de erradicar, mesmo sendo ela permanentemente desmentida por numerosas práticas” (CAUQUELIN, 2007, p. 42).

Esta autora chama a atenção para o caráter pedagógico de nossa relação com a paisagem, ou seja, para a constatação de que existe um aprendizado da paisagem que, ao mesmo tempo, é um aprendizado de nós mesmos. A progressiva consciência de nossos corpos, de suas decorrentes possibilidades e limites, é construída porque ocupamos um espaço, e um espaço particular, o que nos leva, naturalmente, a considerar este espaço como preexistente a nossa consciência (natureza), e não como algo que é construído em relação, ao mesmo tempo (paisagem):

 
“Que a forma simbólica ‘paisagem’ tenha se constituído no decorrer dos séculos é então inadmissível, pois, se a paisagem é identificada com a natureza, ela esteve presente desde sempre. Sempre houve paisagens, não é? Que a paisagem-natureza tenha evoluído, sofrido mudanças, até se admite; assim como os climas, as estações e os solos se transformaram, mas isso decorre de uma natureza em evolução contínua. As ‘formas’ evoluem, mas a partir de um dado existente desde toda a eternidade. Nada a ver, diz-se, com uma construção mental. A paisagem participa da eternidade da natureza, um constante devir, antes do Homem e, sem dúvida, depois dele. Em suma a paisagem é uma substância” (CAUQUELIN, 2007, p. 39).

E ainda:
“Coisa curiosa: quando se trata de culturas estrangeiras, imaginamos facilmente a relação entre os espaços apresentados e os modos de vida, os usos, as ‘maneiras’ de ver e os modos de dizer, de tal forma que chegamos a perceber uma espécie de tecido inconsútil, sem dentro nem fora, em uma única peça. Mas para nós, em nossa própria cultura, temos grande dificuldade em imaginar que nossa relação com o mundo (com a realidade, diga-se) possa depender de um tecido tal que as propriedades atribuídas ao campo espacial por um artifício de expressão – qualquer que seja ele – condicionem a percepção do real” (Idem, p. 45).

Ambos os pensamentos propostos por Berque, o “paisageiro” e o “sobre a paisagem”, obnubilam seu caráter de construção. Tanto os povos que ainda não construíram sua explicação sobre a paisagem, e que, portanto, interagem com ela sem objetivá-la, quanto aqueles que se colocam apartados, distintos da paisagem, e que a modificam como se ela fosse uma “coisa” a seu dispor, partem da mesma premissa de anterioridade da natureza, de paisagem como “coisa sempre dada”. Normalmente, não pensamos criticamente sobre o espaço que ocupamos, questionando, in limine, o próprio caráter ontológico da realidade que habitamos.

Porém, o espaço é uma construção multifatorial, como observam CORRÊA e ROSENDHAL (Apud MARIA, 2010, p. 8):
 
“Na realidade, a paisagem geográfica apresenta simultaneamente várias dimensões que cada matriz epistemológica privilegia. Ela tem uma dimensão morfológica, ou seja, é um conjunto de formas criadas pela natureza e pela ação humana, e uma dimensão funcional, isto é, apresenta relações entre as diversas partes. Produto da ação humana ao longo do tempo, a paisagem apresenta uma dimensão histórica. Na medida em que uma mesma paisagem ocorre em certa área da superfície terrestre, apresenta uma dimensão espacial. Mas a paisagem é norteadora de significados, expressando valores, crenças, mitos e utopias: tem assim uma dimensão simbólica (grifo meu).

Foge ao escopo deste trabalho historiar a evolução e diversificação dos sentidos atribuídos à paisagem. Importa, em um primeiro momento, chamar a atenção para a possibilidade de uma relação não dicotômica e não objetivada para com a paisagem, o que servirá de base ao entendimento, por meio das categorias definidas por Berque, da relação particular dos militares para com o espaço que ocupam.

O geógrafo franco-marroquino Augustin Berque nasceu em 1942. Seu pai é o sociólogo e antropólogo orientalista (islamólogo) Jacques Berque (1910 – 1995), cujos trabalhos sobre o mundo árabe e as estruturas sociais do Maghreb e Oriente Médio marcaram as relações franco-árabes e mediterrâneas, denunciando o autoritarismo burocrático do colonialismo e os efeitos da guerra da Algéria. É da experiência de, acompanhando seu pai, viver em países de culturas radicalmente diferentes, que chega à Berque o interesse pelas relações particulares das sociedades para com seu meio. Lembrando a infância passada no Marrocos e a vívida impressão de seu passado como que fixado no terreno, quando de seu retorno à localidade de Seksawa, no Haut-Atlas Ocidental, Berque utilizou uma expressão que entendo como basilar para este trabalho: “Meu pai tornou-se paisagem”.
 
O sentido de espaço que emerge da expressão acima não é o de um conjunto de componentes topográficos – vales, rios, montanhas – sobre os quais passou a existência de Berque; ou melhor, é um conjunto de elementos, sim, mas preenchidos afetivamente de significados, de tal forma que a história pessoal do autor, sua vida, só pode ser entendida como fruto de uma relação única com o espaço que ele frequentou. E, dialogicamente, ele reconhece que seu pai retornou à mesma natureza fundadora (como experiência vivida), quando falecido.

Os conceitos desenvolvidos são coerentes com a recuperação de um pensée paysagère obscurecido pela modernidade ocidental. Dentre eles, começo pela noção de ecúmeno, não, apenas, como o entendimento pragmático da parte da terra habitada pelo Homem, mas como “a terra e a humanidade, mas não a terra mais a humanidade, e sim a terra enquanto ela é habitada pela humanidade, como, também, a humanidade enquanto ela habita a Terra” (BERQUE apud MARIA, 2010, p.60). O ecúmeno, portanto, como espaço ecossimbólico.

 A partir daí, podemos nos aproximar do conceito de meio, o qual faz eco ao conceito de fûdo, do filósofo japonês Watsuji Tetsurô. Se o ecúmeno é o espaço ecossimbólico, o meio é a relação em ato entre os componentes físicos e a humanidade. “Esta relação, (ou seja, o meio), existe apenas na medida em que é sentida, interpretada e ordenada por uma sociedade; mas onde, também, inversamente, a vida social é constantemente traduzida em efeitos materiais, que se combinam com os fatos naturais” (BERQUE apud MARIA, 2007, p.63).

 O conceito de meio nos leva ao de médiance, entendido como “expressão do meio” para Tetsurô. Ao longo de sua obra, Berque retrabalha este conceito, até formulá-lo como “um sentido ecossimbólico, que comporta, ao mesmo tempo e inseparavelmente, uma dimensão espiritual (significações), uma dimensão carnal (sensações) e uma dimensão física (orientações espaciais e de evoluções temporais)” (BERQUE apud MARIA, 2007, p. 65). Assim, se a médiance é o sentido do meio, este sentido materializa um pensée paysagère, ou seja, um tipo de intervenção do Homem sobre o mundo que considera inseparavelmente o suporte físico, a impressão que este suporte produz sobre seus habitantes e toda uma tessitura cultural que permite atribuir significado à realidade.

 O conceito de trajection se refere ao movimento entre o meio material (físico), objetivo, e o meio fenomenal, subjetivo. Partindo da formulação de DURAND (2002) para “trajeto antropológico”, entendido como “a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas emanando do meio cósmico e social”, Berque formula trajection como a produção da médiance, ou seja, como o movimento que vai do subjetivo ao objetivo e retorna, produzindo a realidade.

 Assim, percebemos que toda a formulação de Berque conduz para que entendamos o espaço e a humanidade como construídos em relação, como um pensée paysagère no qual uma trajection produz uma médiance. A intervenção do Homem sobre o terreno é preenchida por sua subjetividade, não é uma ação objetiva que vai de um sujeito racional sobre uma natureza reificada; é, ao contrário, o resultado de um duplo movimento em que ambas as instâncias (Homem e natureza) são criadas.

 Posso, agora, me aproximar dessa materialização no terreno promovida pelos militares.

 Porque todo o quartel é um elo entre, de um lado, uma instituição carregada de símbolos, de significados, de heranças de sua história própria e da história do país; e, de outro lado, os profissionais (in)vestidos destes mesmos elementos encapsulados nas vestes, nos hábitos e costumes, no gestual específico. A instituição não se organiza, simplesmente, com a noção mais racional de nação, no que esta poderia ser entendida como uma delimitação geopolítica; ela se relaciona – profundamente – com a complexidade da Pátria, no que esta ultrapassa a demarcação espacial para incluir as crenças, a mitologia, a polifonia da linguagem. O espaço da Pátria, ecoando certo romantismo ainda cultivado, lembra o pensée paysagère que não distingue objetivamente sujeitos e predicados, mas os entende recursivamente, em fundação recíproca.

 A possibilidade de morrer pela Pátria, sempre evocada nos juramentos que incluem novos militares, é, ao mesmo tempo e de maneira menos óbvia, a possibilidade de morrer pelos companheiros, pelos irmãos, pela instituição, tal é o caráter indissociável destes elementos: a Pátria, a carregamos no corpo.

3.    Descrevendo, com a ajuda de Berque, o CMRJ

2014
O CMRJ se situa à Rua São Francisco Xavier, nº 227, no bairro carioca da Tijuca. Foi construído em propriedade que pertenceu à Baronesa de Itacurussá, e que já ocupava a esquina entre as ruas São Francisco Xavier e Barão de Mesquita, nos idos de 1889 (ano de sua fundação). Daquela época, cito a primeira recordação que materializa o passado no terreno: o portão original do Colégio.

1911
Nele, contemplamos o fim do século XIX; dele, este período nos contempla.

Contemplamos o século XIX, pelo esforço do próprio Exército em manter a entrada do Colégio inalterada em seu formato e em suas cores. Assim como em outras partes do CMRJ, o passado se solidifica, desdenhando de modificações que se justificariam, até, pela segurança do aquartelamento. Como é possível observar nas imagens ao lado (dos dias de hoje e de 1911) e a seguir, os muros do CMRJ permanecem baixos, apesar da natural demanda por maior segurança.

Muro frontal do Colégio
E, se contemplamos o passado, o século XIX também nos contempla, porque é afirmado como presente nos dias de hoje por uma instituição que, além de enraizar-se em sua história, a projeta como um valor tangível, como um bem apreciável que fala aos que não são militares, que afirma a existência e características do Exército aos que se encontram fora dele. Assim, o século XIX está lá para ser visto e lembrado, mas também nos olha e alerta. A história do Brasil (sujeito em maiúsculas) – e não qualquer história, mas uma versão escolhida e aceita dentre outras possíveis, por seu compromisso com certos valores – nos policia a todos, com a força de certas referências dogmáticas.

Destaco, aqui, a importância que certo conceito de perenidade tem para os militares. Esta história solidificada (por exemplo, no portão principal do CMRJ) atesta a permanência de alguma coisa, para além da transitoriedade dos sujeitos que passam pela Instituição castrense. Se lembrarmos que, de tempos imemoriais até os dias de hoje, a adesão à vida militar exige, em juramento, um sacrifício que pode chegar à própria vida, fica clara a relevância da troca implícita entre os sujeitos – fugazes – e a Instituição (objetivada nas coisas, como no portão principal do CMRJ) – perene.

O portão principal é uma entrada para veículos, ladeada por dois portões menores. Estes portões têm – como veremos a seguir – função fundamental na cerimônia de entrada dos novos alunos.

Avenida das palmeiras imperiais
Ao atravessar a entrada principal, tenho acesso à avenida que secciona a planta do Colégio em duas metades. Iniciando-se logo após o portão e balizada por duas construções muito antigas, que remontam aos primeiros anos do CMRJ – destinadas, hoje, a da esquerda ao “Corpo da Guarda”[7] e a da direita à “Secretaria do Corpo de Alunos”[8] –, esta avenida segue em suave aclive reto até a Praça Conselheiro Thomaz Coelho, palco das principais celebrações do CMRJ.

Como disse, o CMRJ é seccionado em duas metades. A da esquerda, ocupada por pavilhões de salas de aula e de professores, pela centenária capela do Colégio, por instalações de apoio ao ensino e de Companhias do Corpo de Alunos. A da direita, principalmente por instalações desportivas: piscinas, campo de futebol, ginásio poliesportivo, haras.

Atenho-me à avenida: é uma linha reta que sobe, suavemente, rumo à Praça Conselheiro Thomaz Coelho, ladeada por enormes palmeiras. Estas árvores balizam o caminho, como uma guarda de militares posta em forma. Sobre o valor simbólico destas palmeiras, já tratei em outra oportunidade[9], mas é indispensável realçar o apelo heroico, segundo a tipologia de DURAND (2002), e o conjunto de referências consteladas a este regime de imagens: o conflito, a superação, a vitória final. O balizamento pelas palmeiras emoldura o traçado do terreno, atribuindo marcialidade[10] ao percurso das pelas formaturas.

Ao pé de cada árvore, uma placa faz menção à turma de formandos que a plantou. O gesto de plantar as árvores, hoje, se atém a reposição daquelas que morreram, mas permite, dentro da mesma pedagogia patronímica de que trato no presente trabalho, estabelecer um apadrinhamento que fixa no terreno quem não está mais aqui. No caso, alunos que se desvincularam dessa situação de pertencimento e seguem hoje, na sua maior parte, carreiras civis.

 Os dizeres da placa imortalizam: “PLANTADA PELA TURMA 2º SGT MAX WOLFF FILHO 1990 – 1996 CIA ESPECIAL 19 DE DEZEMBRO DE 1996”. As turmas de formação também são apadrinhadas: o Sgt Max Wolff Filho é reconhecido pelo Exército como um herói militar da 2ª Guerra Mundial, morto em combate na Campanha da Itália, em 1945. A evocação de seu nome intenta, como na areté grega, por em relevo atributos caros à Força Armada: coragem, abnegação, amor à Pátria. Identifico, então, esta corrente de vínculos patronímicos, segundo a qual um personagem da história apadrinha uma turma escolar que, por sua vez, “apadrinha” uma árvore (responsabilizando-se pelo seu plantio). Por meio deste encadeamento, a história perpassa os alunos e vem se fixar no terreno. É intenção dessa prática trazer aos alunos certos valores, pela lembrança dos exemplos deixados pela biografia – edulcorada, no sentido de HOBSBAWN & RANGER (2012). Poderíamos discutir o quanto de informação chega aos discentes sobre a atuação do vulto histórico, para que este exemplo tenha alguma penetração.
 
Avançando mais na avenida, leio a mensagem em uma grande faixa amarrada entre as árvores. Ela faz referência ao baile comemorativo do 125º aniversário do Colégio. Interessar-nos-á, mais a frente, a cerimônia militar deste aniversário – o “6 de maio” – como, talvez, a maior das cerimônias do CMRJ, aquela na qual os ex-alunos retornam para o seu pleito de saudade e para a confirmação de seu pertencimento.

Aproveito o mote da faixa e de sua mensagem para destacar que faz parte dessa pedagogia patronímica o uso de frases que aludem a vultos e a momentos históricos. É um recurso de atualização de valores recordar, pela repetição e exposição constantes, certos dizeres atribuídos a heróis, bem como formatá-los em juramentos que irão incluir os discentes, quando das cerimônias em que serão proferidos, no corpo maior da Instituição. Estas mensagens eram afixadas, como acima, nas próprias paredes dos pavilhões. Noto, hoje, um processo de “limpeza” dessas paredes, e a transposição dos dizeres para placas, ao longo dos itinerários. Ao lado, um exemplo de mensagem que, anos atrás, estaria fixada em uma parede.

Prosseguindo, ainda, começo a ver a Praça Conselheiro Thomaz Coelho, a qual quebra com a dinâmica da espacialidade heroica, posto que o deslocamento sai do movimento da reta, da marcha militar, e atinge o espaço circular da Praça, exatamente como um enorme relógio que tem, em seu centro, um mastro de navio servindo à bandeira nacional.

 
Este é o local central das cerimônias do Colégio. Invariavelmente, os alunos postam-se ao redor da Praça, obedecendo à antiguidade de seus anos escolares, que estabelece a hierarquia entre eles.  À medida que o aluno passa de ano, vai ocupando novas posições nas formaturas, de tal forma que, se ele permanecer pelos sete anos que correspondem ao curso completo no CMRJ, terá circundado, em sentido horário (tendo como base um observador postado no Palacete da Babilônia), o centro da praça.

O Palacete da Babilônia – também chamado de “Casa Rosa” –, por sua vez, é o elemento principal da topografia. Tendo servido como casa grande à época da monarquia, foi apropriado como local do comando do CRMJ. Quando os alunos entram em forma (posicionam-se para as cerimônias), estão formados para uma autoridade; esta, invariavelmente, conduz a formatura ocupando posição no Palacete. Assim fica definida toda a espacialidade do evento, e é possível subsumir os rituais particulares que acontecem no Colégio, à normatização geral dos rituais do Exército[11].
  
No momento em que escrevo, a Casa Rosa encontra-se interditada por problemas estruturais que põem em risco sua utilização. Como consequência, todas as atividades administrativas ligadas ao comando foram redistribuídas pelo CMRJ, principalmente no Pavilhão Alexandre Leal, situado à esquerda do Palacete, na foto acima. Entretanto, preservando a espacialidade destacada neste trabalho, o comando das formaturas continua se dando a partir do Palacete, seja porque a autoridade que preside as cerimônias se instala na escadaria da edificação, seja porque ocupa – como aconteceu na festa do 6 de maio – um palanque especialmente montado para este fim, à frente da Casa Rosa.

É importante chamar a atenção, neste momento, para a organicidade existente entre o Colégio Militar – em seus aspectos físicos, topográficos – e os elementos constantes do cerimonial militar. Nenhum destes elementos é natural do CMRJ; ao contrário, todos foram apropriados de uma ritualística tradicional do Exército, fortemente representada nas escolas de formação militar que tem como missão fundamental – ainda que, muitas vezes, não explicitada nos currículos formais – a inculcação de certo “espírito militar”[12].

A “entrada pelo portão” é repetida em diversas escolas; a “entrega da boina”, também. O ato de desfilar entrando na escola, seguido de uma formatura que inaugura o curso, é complementado, quando do término do mesmo, pelo ritual semelhante de saída dos mesmos alunos, agora titulados, em um desfile de sentido invertido. No CMRJ, todos os elementos desse ritual estão presentes, e de tal forma incorporados à história e ao terreno do Colégio, que não parecem ser uma apropriação de outras escolas, locais e épocas.

Entretanto, se a Força Armada busca tratar os Colégios Militares segundo a mesma pedagogia com a qual reproduz sua identidade, está sujeita, também, aos imponderáveis da rede (no sentido de LATOUR, 2012) em que funcionam estes Colégios. Quando observo mais elementos participantes dessas cerimônias; quando incluo aqueles componentes importantes, porém periféricos em relação ao planejamento oficial dos eventos; quando atribuo protagonismo aos intervenientes não militares; quando, por fim, considero como atores os aspectos materiais que incidem sobre o evento concreto que é a cerimônia, então posso chegar à outra leitura do que são estas atividades e do processo sutil de construção da relação entre os alunos e o CMRJ. 

4.    A cerimônia de entrada dos novos alunos

Observei, no início desta descrição, que o portão principal do CMRJ é ladeado por dois portões menores (para militares, como eu, portões dizem muito, pelo motivo que explicarei a seguir). Nos dias normais, o portão central fica restrito a entrada de veículos e o portão da esquerda (de quem entra) ao ingresso de pedestres; o portão da direita permanece fechado.

Tomo, a título de comparação, a cerimônia de ingresso de novos cadetes na AMAN, em Resende, Rio de Janeiro. Naquela instituição, também o portão principal é ladeado por dois portões menores, como é possível ver na foto. Estes permanecem fechados, sendo abertos, apenas, para os rituais de entrada de novos cadetes (portão da direita de quem entra – início do primeiro ano letivo) e de saída dos aspirantes-a-oficial recém-formados (portão da esquerda de quem entra – fim do quarto ano letivo).

A solenidade de entrada começa com os novos cadetes em formados fora da AMAN, na grande área fronteira à Academia. O cadete mais novo daquela turma recebe a chave simbólica da Academia e, com ela, abre o portão da direita (tem, por isso, o apelido de “claviculário” – aquele que guarda as chaves – da turma). Os recém-admitidos entram marchando, em fila indiana, pela longa estrada – cerca de oitocentos metros – que separa o portão principal (chamado de “Monumental”) do conjunto de edificações onde, efetivamente, funciona a AMAN. Este conjunto enquadra um pátio central, no qual a formatura tem prosseguimento.

Falando assim, o gigantismo de todos esses elementos passa despercebido. O estacionamento à frente da Academia é imenso; o “retão” – como é chamado – tem cerca de oitocentos metros e liga o Portão Monumental aos pavilhões, cortando um enorme terreno gramado: o Campo de Marte. Essas dimensões – que bem podem passar por exageradas, para quem não amadureceu dentro do discurso de excelência do meio militar – não encontram justificativa pragmática, não servem a alguma finalidade que não a uma “monumentalidade” autorreferenciada[13] (mais a frente retomo este ponto).

Os elementos fundamentais da entrada dos novos cadetes – bem como da saída dos aspirantes – são constantes nas diversas escolas de formação, bem como em inúmeros cursos de especialização do Exército. No CMRJ, estão mimetizados em holograma – fazendo eco ao paradigma holonômico de Paula Carvalho (1990) –, porém sofrem intervenção peculiar de diversos atores.

A entrada dos novos alunos aconteceu no dia 07 de fevereiro, às 07:30 horas da manhã. Eles estavam descaracterizados como discentes do Colégio, situação esta que começou quando de suas chegadas ao CMRJ para um período letivo preliminar que, como um todo, é entendido como uma “ambientação”. Até então, seu traje para as aulas era composto de tênis preto, calça jeans e camiseta branca, o que lhes dedicou apelidos, tais como o de “cotonetes”[14].

Ao mesmo tempo em que estas roupas uniformizam, elas marcam uma distinção que exclui os jovens da condição de alunos.  Eles são identificáveis em um todo – logo, uniformizados – que se caracteriza pela negatividade: são legalmente alunos do CMRJ, porém não conquistaram o direito de ombrear com os demais, pela partilha dos símbolos: as roupas, com suas cores e feitio; os adereços que os enquadram dentro do Corpo de Alunos; e a boina garança, objeto icônico dessa fusão entre a história (do Brasil, do Exército e dos Colégios Militares) e o grupo (a irmandade dos alunos e dos ex-alunos dos Colégios Militares).

Como ocorre nestas ocasiões festivas, o século XIX recepcionou-me, e aos demais visitantes, nos portões abertos sob o arco com os dizeres: “Colégio Militar”. O Colégio estava embandeirado com as cores do Exército (vermelho e azul) e cheio dos responsáveis que vieram prestigiar seus dependentes.

É inevitável comparar duas maneiras muito distintas de se lidar com o tempo. Na mesma rua em que se situa o CMRJ, um pouco mais à frente e na calçada oposta, se encontra uma filial do Colégio Pedro II, educandário coirmão nesta herança imperial. Porém não se vê aquele Colégio, em suas festas e recepções ao público externo, vestir-se do tempo, cobrir-se da própria história. Mesmo sendo mais velho (não aquela filial vizinha), sua paisagem, o espaço que ocupa, não parece fazer parte de sua existência, como acontece com o CMRJ. Sintetizando, o coirmão poderia sair dali e ser o mesmo Pedro II em outro lugar; o CMRJ só pode ser a si próprio, naquela paisagem.

Neste ano em que acompanhei a cerimônia – e já em alguns anteriores, quando trabalhei (“servi”[15]) no Colégio – os novos alunos foram dispostos em uma primeira formatura, próxima da entrada do Colégio, no estacionamento que fica à direita de quem entra no CMRJ. Mais de duzentas crianças e adolescentes, principalmente do 6º ano do Ensino Fundamental. Seguindo a metodologia adotada pelo Exército, de modo geral, para a Ordem Unida[16], o lugar dos participantes em forma tem a ver com suas alturas: os maiores à frente. Esta regra, conjugada à separação por anos letivos – o que, no caso dos Colégios Militares, implica na separação por Companhias de Alunos (Cia Al)[17] – fez com que aquela formatura preliminar, que nada tem a ver com toda a função simbólica da “entrada dos novos alunos”, sendo, apenas, um acessório necessário a organização do evento, preservasse a hierarquização entre os alunos, já que os “maiores a frente” são os mais velhos, de anos superiores, e que deverão entrar primeiro no CMRJ.

Começou a cerimônia. E quem pensa em cerimônia, ou formatura, ou festa, ou qualquer atividade aberta ao público dentro de um quartel – que busca sempre estar fechado, no sentido mesmo da “caixa-preta” de Latour (2012), como um actante tão firmemente estabelecido que se pode desconsiderar seu interior – quem pensa, enfim, nestas atividades sociais desconhecendo o ethos militar,  corre o risco de não ponderar a importância do roteiro para aquilo que está acontecendo ou vai acontecer. Nada é gratuito. Ou melhor, nada deveria ser gratuito.

Obedecendo aos comandos de voz e de corneta, cadenciados pela banda militar, os novos alunos começaram a se deslocar, de tal forma que o primeiro posicionamento foi se desfazendo, dando lugar a uma longa fila indiana. Os alunos, então, saíram do Colégio, pelo portão da direita de quem entra, contornaram o trecho de calçada fronteiriço ao portão central, e entraram, novamente, pelo portão da esquerda.

A imagem ao lado, extraída de um vídeo amador[18], expõe o mecanismo de maneira clara. Ao fundo, vemos o portão da direita, o qual, tradicionalmente, tem função de destaque apenas na formatura de saída dos alunos recém-formados (concludentes do Ensino Médio). Excepcionalmente, ele serviu como passagem para os novos alunos, que saíram e foram readmitidos, agora pelo portão “certo”: o da esquerda (ainda que esta convenção inverta o que é praticado na cerimonia análoga realizada na AMAN, referência principal para estes eventos; naquela escola, os novos alunos cruzam sempre o portão da direita). Os maiores estavam à frente, respeitando uma hierarquia que é a da precedência dos anos escolares superiores. É notável que os alunos tiveram pouco tempo para assimilar todos os detalhes exigidos na prática da Ordem Unida, o que – para os olhares experientes dos militares – realçou a impressão geral de que ainda estavam imitando uma prática que não lhes foi incorporada.

Cada aluno que entrou, logo após transpor o portão da esquerda, prestou continência[19] à autoridade que o recepcionou. A continência é explicada como um gesto de cumprimento privativo dos militares. Sua história remonta aos cavaleiros medievais abrindo as viseiras de seus elmos, demonstrando boa-vontade para com outras pessoas; passa pelo Almirante Nélson saldando a Rainha Vitória...

As continências feitas (“prestadas”) não são iguais. Deveriam sê-lo, dentro da estrita normatização de gestos e de posturas por meio dos quais a Instituição se transpõe, se incorpora nos seus membros[20]. Mas não o foram: porque tiveram pouco tempo para o treinamento (e uma continência em movimento é bem mais difícil que uma continência parado); porque nunca atentarão, mesmo com o tempo, para o valor que o Exército vê na uniformidade...

Mas foram diferentes. Os novos alunos distribuíram-se, dos mais jovens – por volta dos onze anos – aos mais velhos – cerca de dezesseis; todos entrando em fila indiana (“coluna por um”), dos mais velhos (séries maiores) aos mais novos (séries menores) e prestando continência à autoridade, tão logo cruzaram o portão da esquerda. E algumas mãos estavam mais espalmadas e no ângulo correto; outras em concha. Algumas pareciam esconder rostos que não queriam encarar a autoridade; outras emolduravam rostos altivos, alegres, sem nenhum tipo de constrangimento pela incipiente experiência com a hierarquia (talvez porque não vivenciassem a experiência assim, como já uma relação hierárquica).

No geral, as continências – ainda que atendendo a prerrogativa de serem um cumprimento – já eram, ali, reinterpretações da mensagem por comunicar naquele gesto específico: um sinal de respeito que, partindo do militar de menor posição hierárquica para o de maior posição, atesta sua subordinação. Os alunos, não sendo militares, mais uma vez deveriam mimetizar a intenção no rigor do gesto, em sua padronização e uniformidade. Entretanto, mesmo que por motivos outros que não uma contestação desse sentido instituído, as saudações foram saindo diversas, singularizadas, personalizadas dentro da margem segundo a qual um gesto pode ser lembrado como uma continência, ainda que imperfeita.

A marcha em fila indiana prosseguiu rua acima, sob os olhares dos familiares que estavam distribuídos nas duas calçadas. Os discentes foram reordenados na Praça Thomaz Coelho, agora dentro da disposição normal para as formaturas: a tropa à esquerda de quem preside a cerimônia (posição de quem está no Palacete da Babilônia) é a do menor escolar (6º ano do Ensino Fundamental), alunos com a menor média de idade e menores em altura; circulando a Praça em sentido horário, estão os do maior ano escolar (3º ano do Ensino Médio), maior altura e idade. Os novos alunos, com sua roupa particular que ainda os distinguia dos demais, porém adentrados oficialmente ao CMRJ – logo, alunos de fato – assistiram o restante da formatura junto com seus pares.

Esta cerimônia tem por finalidade marcar a inclusão dos novos alunos – muitos dos quais já assistiam as aulas há vários dias – pela autorização, aos mesmos, do uso do fardamento. Insistindo na relevância que tem a farda dentro do processo identitário do militar, inclusive pelo caráter metonímico segundo o qual quem a veste – fazendo-o por direito – está investido da Força Armada, assinando, ainda que implicitamente, a adesão ao seu código de costumes e valores, destaco a sempre necessária prova de merecimento que subjaz à inclusão oficial.

Ainda que o processo seletivo para o ingresso nos Colégios Militares venha se diluindo ao longo das últimas duas décadas, de tal forma que, hoje, menos de 20% de todos os alunos passem por alguma seleção intelectual, os Colégios lutam, ainda que subliminarmente, pela manutenção de certa separação dentro-fora, do tipo comum às demais escolas de formação: uma fronteira clara, materializada no uso regulado e restrito dos símbolos, entre quem é ou não é aluno, de tal forma que fique visível e palpável esta separação.

Como evidência dessa lógica, a chamada “semana zero” (que pode durar mais ou menos uma semana de calendário), período de adaptação dos novos discentes antes da entrada pelo portão, não é só um intervalo para as medidas administrativas e burocráticas, para conhecer salas e professores, para um primeiro “enturmamento” com os futuros companheiros; é uma primeira oportunidade para o aprendizado do que é ser aluno do Colégio Militar – metonimicamente, do que é ser militar (ainda que nunca o sendo) –, dispersado nos aprendizados menores e mais pontuais sobre como vestir a farda (a existência e posição dos vincos, dos cadarços de identificação, os comprimentos e medidas dessas peças de vestuário); sobre como cuidar da farda (o polimento dos sapatos, o asseio com o tecido, as interdições – a camisa nunca fora da calça); e sobre como se cuidar quando usando a farda (não se comportar com relaxo, displicência, impolidez, posto que, fardado, o aluno representa o Exército, mesmo não sendo militar). É quando, de certa forma, a farda começa a pesar sobre o aluno.

A “semana zero”, então, é este período pretendido como indispensável (apenas pretendido, porque as transferências dos responsáveis acabam impondo, contra o interesse do Colégio, a chegada de discentes ao longo de todo o ano letivo, e essa minoria que chega contrariando o calendário escolar não passa pelo cerimonial de admissão) para a “conquista do direito de ser aluno”, a qual, se minimizada pela crescente dispensa dos processos seletivos para a admissão, nunca deixou de existir em modo tácito.

Entretanto, se toda essa intenção da Instituição, se todo esse significado instituído é identificável e pode ser descrito como o faço, como – efetivamente – acontece o evento da passagem pelo portão, da admissão dos novos alunos, da autorização para vestir / investir-se da farda? Quer dizer, o que acontece fora do “comum construído”[21] pelos roteiristas de cerimônias?

Busco essa tênue região de sombra em que a tradição, atualizada de suas raízes históricas e replicada nas diversas escolas de formação – de tal forma que uma mesma “passagem pelo portão” volta a acontecer ano a ano, escola por escola –, seja um acontecimento ímpar, uma outra coisa que diga do caráter irreprodutível de cada acontecimento.  Com esse olhar mais aberto à gama de intervenientes, de actantes que compõem o evento que escolho acompanhar, destaco um aspecto que me pareceu icônico dessa singularidade:  o ato de entrar pelo portão da esquerda, agora precedido da saída pelo portão da direita.

O CMRJ se situa, desde sua fundação, no mesmo endereço. Inclusive, por cláusula constante do termo de doação do terreno no qual está localizado, o Exército não pode fazer outro uso da propriedade, sob pena de perdê-la para a Associação Comercial do Rio de Janeiro (COSTA e CUNHA, 2006). O bairro da Tijuca, ao longo dos cento e vinte e cinco anos da existência do Colégio, cresceu exponencialmente e perdeu o aspecto rural denotado das fotos mais antigas. Por conta dessa mudança de contexto, as condições para a perpetuação das tradições vão sendo modificadas.

Como dispor uma tropa em forma fora do CMRJ, em posição tal que seja possível realizar a entrada pelo portão como manda a tradição, sem colapsar o já caótico trânsito tijucano? Em uma situação ideal, o Largo Aluno Horácio Lucas[22], à frente do Colégio, interligado à Rua General Canabarro, receberia esses alunos.


A imagem anterior, obtida pelo Google Maps[23], representando a posição de um observador postado no meio do portão central do Colégio e de costas para ele, permite dimensionar a adequabilidade do espaço, ao mesmo tempo em que sua inviabilidade: nos dias de hoje, em horário comercial, com a demanda local por fluxo de trânsito, é impossível interditar uma via desse porte para esta finalidade.

Então, a solução encontrada que preserva a cerimônia e o movimento emblemático de cruzar o portão, consiste em dispor os neófitos já dentro do CMRJ, no próprio estacionamento do educandário – sob o controle dos agentes de ensino –, fazendo-os sair para depois entrar, novamente, ainda que este expediente implique em “inverter a mão” na execução do processo: diferente de outras “entradas pelo portão”, os calouros entram pelo portão da esquerda de quem observa de fora, e não pelo da direita.

Esta solução faz eco a muitas outras, observáveis em unidades militares localizadas em área urbana, sempre adotadas buscando a conciliação entre a atemporalidade pretendida pelos rituais (ideal) e a contingência do espaço urbano (real). Rapidamente lembro que, no próprio CMRJ, as salvas de canhão (quando de certas datas festivas, como o dia da arma de Artilharia), devem ser avisadas a toda a vizinhança, e com boa antecedência.

Depois que os alunos entram no Colégio, este recupera o controle sobre os intervenientes: os roteiristas respiram aliviados. A cerimônia pode transcorrer à semelhança do amplamente regulado nas normas expedidas pelo Exército[24]. 

5.    A entrega da boina garança

A entrada pelo portão, entretanto, é a primeira metade de um processo de inclusão que se completou no dia 14 de março, com a entrega da boina garança. Na verdade, a data pretendida para esta segunda cerimônia é o “Dia do aluno” (9 de março), dia da assinatura do Decreto nº 10.202, de criação do CMRJ, em 1889[25]. Em dezembro de 2004, a Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial (DEPA), órgão responsável pela direção do Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB), instituiu, no intuito de estabelecer uma data comemorativa nacional, o 9 de março como “dia do aluno”, e, nele, deve ser realizada a entrega da boina.

Novamente, porque as condições concretas para a materialização dos rituais impõem adequações que visam ao bom senso da conciliação – já que o dia 9 de março caiu em um domingo –, aproveitou-se o dia 14 de março (uma sexta-feira, dia em que, tradicionalmente, são realizadas as formaturas dedicadas ao comando do Colégio) para a entrega da boina.

Os novos alunos entraram em forma misturados aos demais. Já estavam fardados, irmanados com os mais antigos, porém incompletos. As cerimônias militares sempre começam pela recepção às autoridades que as presidirão. Posiciona-se o Comandante do Colégio, o qual recebe a apresentação da tropa pelo subcomandante e a apresentação do Batalhão Escolar pelo coronel-aluno[26].

Neste momento, dois universos assemelhados e em dimensões diferentes, pareceram se aproximar, sem se sobrepor. O dos militares profissionais, daqueles que são realmente militares, executou um gestual que lhe é rotineiro, o da apresentação de uma tropa. Neste gestual, o militar que está comandando os militares que irão participar do evento se identifica para aquele que presidirá a formatura (no caso em questão, o subcomandante do CMRJ identificou-se para o comandante), passando a este a autoridade para comandar todo o conjunto dos demais militares que, formados, estavam sob seu comando. Depois desta apresentação, o coronel-aluno, reproduzindo o gestual, apresentou o Batalhão Escolar, ou seja, todo o conjunto de alunos que, não sendo militares, neste momento – porque estão militares – se integraram ao conjunto total da formatura. A partir daí, a autoridade presidente do evento se tornou um ponto focal para o qual todos os acontecimentos irão convergir.

Os itens seguintes são, em linhas gerais, comuns às cerimonias militares. Presentes nas normas que regulam estes eventos, aconteceram em sequência, após serem anunciados pelo mestre de cerimônias da formatura:

- Hasteamento do pavilhão (bandeira) nacional. Hastear a bandeira é tido como uma honra, para a qual uma representação de alunos é designada. Após anunciados eles cruzaram, marchando, a frente de todos, indo até o grande mastro de navio (doação da Marinha do Brasil), no centro da praça, no qual içarão a bandeira. O pavilhão foi fixado na corda por seus ilhoses e, isto feito, ao toque da corneta, todos os presentes prestaram continência à bandeira, que começou a ser hasteada. A banda do Colégio, composta também por alunos, tocou a primeira parte do Hino Nacional, de tal forma que o aluno que, lentamente, içou a bandeira, fê-lo no tempo certo de execução da música. Ao término do hino, a bandeira chegou ao topo do mastro; um novo toque de corneta determinou que as continências fossem desfeitas, ou seja, todos abaixaram as mãos.

- Canto da canção do Colégio Militar do Rio de Janeiro. Todos os Colégios Militares possuem canções que os diferenciam uns dos outros, ao mesmo tempo em que os irmanam no mesmo vocabulário típico. São canções que falam dos costumes, valores e tradições do Exército, costurando, sobre o estofo do sentimento patriótico, as histórias do Brasil e do Colégio, suas geografias e tipicidades. No caso do CMRJ:

“Somos jovens, destemidos / E vibramos a marchar / Os alunos sempre unidos / Do COLÉGIO MILITAR // Nossa luta nos ensina / A vencer, a ter pujança, / e lutamos, só domina / Nosso peito a esperança //
Companheiros leais, trabalhemos e faremos / Num esforço, vibrante, febril / Desta casa que amamos, um templo, um exemplo / Grandioso de amor ao Brasil! // [REFRÃO]
Aqui Pátria, nós sabemos / Quanto és grande em terra e mar; / Teu valor nós aprendemos / Aprendemos a só te amar! // Nosso culto é o mesmo, agora; / Que o dos nossos pais e avós, / E alguém que mais te adora! / Não te adora mais que nós! //
Companheiros leais, trabalhemos e faremos / Num esforço, vibrante, febril / Desta casa que amamos, um templo um exemplo / Grandioso de amor ao Brasil! // [REFRÃO]
Prossigamos na porfia / Estudemos a valer / Com denodo e alegria / A cumprir nosso dever // Mais um dia o pranto há de nossos olhos inundar / Ao chorarmos a saudade / Do COLÉGIO MILITAR //
Companheiros leais, trabalhemos / E faremos / Num esforço, vibrante, febril / Desta casa que amamos, um templo Um exemplo / Grandioso de amor ao Brasil! // [REFRÃO] 

Em toda a sua duração, a canção enfileira adjetivos que, não sendo de uso privativo aos militares, evocam aquelas virtudes caras à caserna: “destemidos”; “unidos”; “leais”; “vibrante”... Os verbos, por sua vez, são da constelação heroica (DURAND, 2002): “marchar”; “vencer”; “lutamos”; “domina”... Ou ressignificados para o uso militar: “vibramos”... E o país (“Brasil” ou “Pátria”) aparece várias vezes, sempre hiperbolizado: “...um templo, um exemplo / Grandioso de amor ao Brasil!”; ou: “Aqui Pátria, nós sabemos / Quanto és grande em terra e mar”; ou, ainda: “Teu valor nós aprendemos / Aprendemos a só te amar!” Também merece destaque a tentativa de superação do tempo que passa, que é típica da tipologia heroica (DURAND, 2002): “Nosso culto é o mesmo, agora; / Que o dos nossos pais e avós”, conjugada com a constatação da fugacidade da experiência humana: “Mais um dia o pranto há de nossos olhos inundar / Ao chorarmos a saudade / Do COLÉGIO MILITAR”.

- Entrega das boinas. Foi anunciado, então, o momento em que as boinas seriam entregues aos alunos por seus padrinhos. O corneteiro executou o toque de “descansar”, o qual teve o efeito de interromper o caráter monolítico da formatura. Em uníssono, os alunos pareceram relaxar e, neste movimento, emergiram individualizados de dentro do bloco indiferenciado que seu conjunto representava, quando irmanados na prática da ordem Unida[27].  A princípio indecisos, acanhados, depois com maior convicção – que se traduz na velocidade de seu movimento – os pais, responsáveis e amigos dos alunos misturaram-se a eles, para entregar suas boinas.

A passagem para a condição de “a vontade” merece destaque, por marcar de maneira muito visível a transição entre dois estados: quando formados, submetidos à Ordem Unida, subsumidos no todo daquilo que chamamos de “tropa”, os alunos estão indiferenciados, diluídas suas identidades nessa materialização da Instituição como uma grande farda uníssona. Os alunos fazem parte da paisagem. Quando, bem ao contrário, lhes é consentido o relaxamento, ainda que se mantendo nas mesmas posições, parecem emergir as diferenciações – ainda que encapsuladas no fardamento –, mas não se trata mais de um tijolo, de um dispositivo,  mas de uma pluralidade indivisa na confusão, em uma boa bagunça, em uma balbúrdia que é da festa, mesmo.

As boinas foram entregues com o entendimento tácito, não formulado, de que são prêmios. Eram o que estava faltando, até então, para que a composição “aluno do Colégio Militar” ficasse completa. Mesmo que desvinculadas de todo aquele mérito antes associado ao acesso à condição de alunos, permanece o sentimento geral que, de alguma forma, o direito de usá-las foi “adquirido” pelos novos alunos, o que é ratificado pela participação nas duas cerimônias (entrada pelo portão e entrega da boina propriamente dita).

- Saudação colegial. Este item, também presente, não só nas formaturas do CMRJ, mas em diversas ocasiões em que os alunos (ou ex-alunos) se encontram reunidos, merece uma atenção especial. O “zum zaravalho”[28] é um grito de guerra em forma de onomatopeia, o qual, sendo proferido pelos que possuem vínculo com os Colégios Militares do Brasil, os irmana no mesmo pertencimento. Após ser anunciado na formatura que a próxima ação seria a saudação colegial, o coronel-aluno, ocupando posição de destaque mais ao centro do dispositivo, “puxou” o grito de guerra: 

E ao Colégio, tudo ou nada?” 
Ao que todos os presentes – e não só os alunos em forma – respondem:
Tudo!” 
E o coronel-aluno:
“Então como é ? Como é que é?”
E todos os presentes:
“Zum Zaravalho, opum, zarapi zoqué, / Oqué-qué, oqué-qué, / Zum! / Pinguelim, pinguelim, pinguelim! / Zunga, zunga, zunga! / Cate marimbau, cate marimbau! / Eixau, eixau! / Colégio!” 

A “qualidade” da saudação tem a ver com a intensidade, a “paixão” subentendida no grito de todos; e, não menos importante, na impressão de uníssono, como também são consideradas expressões de “vibração”, na interpretação dos hinos e canções militares, essas mesmas características. 

- Desfile do Corpo de Alunos. Como outra característica emulada dos meios militares, toda formatura termina com a tropa que estava em forma desfilando em continência à autoridade que presidiu o evento. Normalmente, esta é a última atividade dentro de uma formatura. 

No caso do CMRJ, se faz necessária uma movimentação particular para que os alunos se posicionem. Sempre a comando de toques de corneta ou a voz, eles começaram a marchar contornando a Praça Thomaz Coelho, e seguiram para trás do Palacete da Babilônia, em direção ao espaço conhecido como “Praça dos Canhões”. Neste primeiro deslocamento, cada segmento, cada subconjunto de alunos – que, no caso do CMRJ, são os anos letivos compartimentados em Companhias de Alunos – procura demonstrar sua “vibração”, seu amor ao Colégio, pela repetição entusiástica de palavras de ordem, curtos gritos de guerra, bem como por meio da repetição daqueles vocativos típicos das tropas em marcha.

Por um curto espaço de tempo, os alunos – evidência de vida do Colégio, matéria efervescente sobre a história materializada – sumiram das vistas de todos. As autoridades que assistiram tudo até então, em posição de destaque, saíram das escadas do Palacete em direção ao centro da praça, posição tal em que foi possível acompanhar o desfile propriamente dito, ficando à direita do deslocamento da tropa. 

Carneiro Nicodemus
Os desfiles militares são regidos segundo a lógica da hierarquia e da disciplina: desfilam primeiro, sempre, os mais “antigos”, os de posição mais alta na hierarquia. Assim é que, nos desfiles do CMRJ, passam primeiro os profissionais (professores e demais agentes de ensino), organizados em “tijolos”, para, só depois, passarem os alunos. Subvertendo essa lógica – em uma inversão que salienta a regra –, o desfile dos alunos começou pela passagem do carneiro Nicodemus[29], conduzido por uma guarda dos menores alunos do 6º ano. Após esta passagem, seguiram-se todos os alunos, agora não mais seccionados entre “novos” e “antigos”, posto que irmanados no fardamento completo, corretamente vestido e com a mesma boina vermelha. 

Companhia de Infantaria
O desfile dos alunos é hierarquizado, não só segundo os anos letivos (do 3º ano do Ensino Médio até o 6º ano do Ensino Fundamental), como dentro das Armas em que foram distribuídos os discentes do Ensino Médio. Estas seguem uma “antiguidade” entre si, de tal forma que a Arma mais “antiga” é a Infantaria, seguida pelas Cavalaria, Artilharia e Comunicações.


Esquadrão de Cavalaria
A distinção por pertencer a uma Arma (identificada por um brasão aposto no braço) permite outras ostentações diferenciadoras, tais como o uso das botas e dos culotes (no caso da Cavalaria) e dos coturnos (no caso da Infantaria).
3º B CM
Cada um desses segmentos repete um mesmo protocolo: começa a descer a avenida, cadenciado pela banda do Colégio; na mesma altura do percurso, obedecendo à sinalização de uma bandeira vermelha e o comando à voz do comandante do segmento, presta continência (a primeira fileira) olhando para a direita (da segunda fileira em diante), todos juntos e da mesma maneira. Ao cruzar por outra bandeira que demarca a altura certa do caminho e de novo ao comando de voz de seu comandante, o segmento desfaz a continência e olha para frente.

Sobre o desfile dos alunos, e no interesse mesmo de dar visibilidade a outros atores que participam da rede que emerge do cerimonial, chamo a atenção para algumas características do fardamento feminino e as consequências de seu uso.






3º A CM
O uniforme de uso mais cotidiano, no CMRJ, é o chamado de 3º B CM, o qual, para as mulheres, é dotado de uma calça (ou saia, ou culote) cáqui, com uma estreita lista vertical vermelha em sua lateral. Porém, em se tratando de uma data comemorativa, para a qual se esperou uma pompa maior, o uniforme da atividade foi o 3º A CM, igual ao anterior, porém com a saia (ou culote) vermelha, e meias brancas compridas, para as mulheres. Enquanto que as meias brancas que acompanham o 3º B CM podem ser do tipo “soquete”, desde que totalmente brancas e finas (como observável nas fotos acima, retiradas do RUE), a longa meia branca que compõe o 3º A CM é de material sintético, e deverá ser usada com um sapato preto de desenho mais social do que o sapato preto usado no dia-a-dia.


É muito comum acontecer – e no desfile observado não houve exceção – da movimentação das pernas na execução da ordem unida (em que são esperadas passadas enérgicas, como que chutando o ar à frente), no percurso que é de descida da rua e sobre um chão de paralelepípedos, de alguns sapatos serem arremessados, e a menina (ou adolescente) que sofre este acidente ter de prosseguir no desfile descalça, mantendo a mesma impostura de marcialidade, porque não é permitido sair do dispositivo para apanhar e calçar, novamente, seu sapato.

Este tipo de episódio, que é sempre pitoresco, pode ser notado como aquela ruptura na qual a pontualização da rede – no sentido dado por LATOUR (2012), de tal integração dos componentes que faz com que os elementos sejam subsumidos, ficando indistintos de todo cenário – é rompida por algum imponderável, o que traz a tona um sem número de atores que não eram reconhecidos no primeiro plano[30]. No caso em tela, emergem questões tais como: a incompatibilidade dos movimentos da ordem unida, definidos para profissionais adultos do gênero masculino, calçando sapatos ou coturnos mais próprios para o exercício, para com crianças e, em especial, meninas; a dificuldade específica gerada pela combinação entre aquela meia, aquele sapato e aquele tipo de calçamento; etc.

Não que estes episódios sejam tão frequentes; eles o são, na medida de serem compreendidos e aceitos, ou seja: se acontecessem o tempo todo, a própria necessidade institucional de preservar a cerimônia faria com que fossem, de alguma maneira, evitados. Como ocorrem quase sempre, mas em uma quantidade que não contamina o efeito esperado de um desfile militar (no que este é feito de unicidade e marcialidade), a exceção é pitoresca e serve ao rompimento da caixa-preta, como observei, mas não são, de maneira nenhuma, ameaçadores.

No exemplo agora explorado, é justamente durante um desfile militar, entendido como uma exteriorização de disciplina, de ordem, de controle, no qual, invariavelmente, se espera a subsunção de todos os componentes em um uníssono, que esta expectativa é quebrada porque a emulação de uma prática profissional, quando realizada por outros atores, está sujeita a um rol de intervenientes inesperados.

Após o desfile dos alunos, novamente entraram em cena os profissionais: foi o momento de passagem da Companhia de Comando e Serviços (CCSv), na qual estão reunidos os soldados responsáveis pela manutenção, em seus diversos níveis, do CMRJ. 

6.    Conclusões

No presente trabalho, busquei uma primeira aproximação do que é ser um aluno do Colégio Militar do Rio de Janeiro, começando pela sua admissão simbólica a esta condição. Para além dos ditames legais e burocráticos, existe uma entrada autorizada no Colégio, que é uma admissão à condição de aluno, materializada nas duas etapas aqui descritas: a entrada dos novos alunos pelo portão e a entrega da boina garança. 

Este trabalho se insere como parte de uma investigação maior, esta voltada à compreensão da relação dos discentes para com sua condição ímpar de alunos de um Colégio Militar, em particular o CMRJ. Esta relação está sendo investigada pela via da materialidade das vestes e dos gestos, das coisas que montam a identidade militar e em como esses dispositivos, no sentido atribuído por Foucault (2007) e apropriado por Agamben (2007, 2009) – tendo, a princípio, uma estratégia dominante (FOUCAULT 2007, p.137) que se esvazia de sua pretensão subjetivadora, rumo à dessubjetivação (AGAMBEN, 2009, p.49) –, são apropriados pelos alunos.

Cresce de importância procurar compreender como o Exército precisa (e como ele faz uso) de uma relação particular com a paisagem – entendida como espaço ecossimbólico –, a qual, em última análise, é a Pátria – no que esta ultrapassa a objetividade da nação, rumo a um complexo cultural muito mais amplo – e como, na materialização desse território nos próprios militares (principalmente no fardamento, mas também no gestual e na linguagem) a Instituição busca se manter, reproduzir e perpetuar.

Os alunos parecem fazer uma releitura, buscar uma ressignificação que não é afrontamento, mas convivência. Se, por um lado – e aí lançando mão da colaboração de Berque – o Exército faz um uso muito particular de seus símbolos, ancorando sua identidade no espaço (nação) e na história (do Brasil), fazendo emergir daí um significado muito específico para Pátria (espaço ecossimbólico), os alunos parecem buscar sua própria territorialização, mas em uma “ancoragem no ar”, metáfora que deduzo da contribuição de EUGENIO (In ALMEIDA e PAIS, 2012, p. 228-9):

“Se os espaços tendem à transparência, a subjetividade tende à exteriorização e a operar por um constante exercício de explicitação; se os espaços tendem à reversibilidade e ao constante redesenho, a subjetividade faz-se também por operacionalização e conexão. Simultaneamente, um pensar e um fazer, a criatividade relacional e situada – que é um atravessamento comum nos processos de subjetivação dos diferentes agentes que encontramos – é uma operação de geração de clareza sobre o que se tem disponível (materiais, informações, técnicas e tecnologias, etc) de ‘desfragmentação’ e desatrelamento dos usos, funções e sentidos, e de reconexão, recombinação e rematerialização em novos acontecimentos ou produtos”.
Eles, os alunos, desinsularizam-se (EUGENIO In ALMEIDA e PAIS, 2002) espalhando suas identidades na contingência dos relacionamentos, praticando uma criatividade situada (idem). Neste processo, se, por um lado, a Instituição insiste em sujeitar por meio de costumes, práticas, gestos e uniformes totalmente regulados quanto ao uso, aos cuidados e às interdições, os sujeitos – que não são militares, mas estão militarizados por sua situação transitória de alunos – se evadem para outro millieu humain (MARIA, 2010), praticando um enraizamento dinâmico (MAFFESOLI, 2003).

É dentro deste cenário que busquei realizar a pesquisa etnográfica dos rituais de admissão: atento para não emoldurar a observação em nenhuma teoria previamente levada ao Colégio, respeitando, assim, um fundo em que todos podem comparecer, sejam humanos ou não-humanos, actantes em geral que interferem em modo equidistante sobre a realidade – segundo a antropologia simétrica e a teoria do ator-rede de LATOUR (1994, 2012); atento, também, para um corte que sulcou a realidade complexa, que foi a atenção sobre os vários dispositivos, na conceituação amplificada de AGAMBEN ( 2007, 2009).

São esses corte e fundo que permitem ponderar, por exemplo na formatura da entrada pelo portão, o trânsito na avenida São Francisco Xavier como um adjuvante importante para a maneira como a cerimônia se realizou – e o grande responsável pela “mudança de mão” no ritual de entrada: os alunos saíram pelo portão da direita e entraram pelo da esquerda.

Ou reconhecer que as fardas, ao mesmo tempo em que foram colocadas nas pessoas para dizer alguma coisa, e, no mesmo movimento, torná-las impessoais, acabam por dizer sempre algo mais, com voz própria, como no contratempo da menina que perdeu o sapato durante o desfile, ao término da cerimônia de entrega da boina garança.

Os trabalhos seguintes, como é próprio e esperado das aproximações, se adiantarão e se achegarão do cotidiano do Colégio, não só naqueles eventos privilegiados como são as formaturas (a próxima a ser descrita é a festa do 6 de maio, aniversário do CMRJ), como, também, nas oportunidades menos formalizadas, porém não menos ricas, como é o caso da escolha das Armas. 

7.    Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
_________. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
BERQUE, Augustin. La pensée paysagère. Paris: Archibooks, 2008.
_______. Território e pessoa: a identidade humana. Desigualdade e diversidade – Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, nº 6, jan/jul. Rio de Janeiro: PUC, 2010.
CÂMARA, Hiram de Freitas. Marechal José Pessoa. A força de um ideal. Rio de Janeiro: Bibliex, 2011.
CASTRO, Celso. O Espírito Militar. São Paulo: Jorge Zahar, 1990.
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
COSTA e CUNHA, Beatriz Rietmann da. Assistência e profissionalização do exército: elementos para uma história do Imperial Colégio Militar. Dissertação (Mestrado em Educação). Rio de Janeiro: Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006.
_____________. Ensino secundário militar na Primeira República: a construção dos colégios militares (1889-1919). Tese (Doutorado em Educação). Niterói: Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, 2012.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
EXÉRCITO BRASILEIRO. Regulamento de Continências, honras, sinais de respeito e cerimonial militar das Forças Armadas (R-2). Decreto nº 2.243, de 3 de junho de 1997.
_________. Regulamento de Uniformes do Exército (R-124). Portaria Ministerial nº 806, de 17 de dezembro de 1998.
_________. Manual de Campanha Ordem Unida (C 22-5). Portaria do Estado-Maior do Exército nº 079, de 13 de julho de 2000.
FIGUEIREDO, Antônio Joaquim de; e FONTES, Arivaldo Silveira. Breve introdução à história dos Colégios Militares do Brasil. Rio de Janeiro: Estabelecimento General Gustavo Cordeiro de Farias, 1958.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2007.
FREIRE, Fábio Facchinetti. O silêncio das palmeiras imperiais. Um estudo socioantropológico sobre o Colégio Militar do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Educação. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2007.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto / Editora PUC-Rio, 2010.
HOBSBAWM, Eric J. e RANGER, Terence O., A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2012.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 1994.
_________. Reagregando o social. Uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador: EdUFBa, 2012; Bauru: EdUSC, 2012.
LAW, John. Notas sobre a teoria do ator-rede. Ordenamento, estratégia e heterogeneidade. Disponível em: http://www.necso.ufrj.br/Trads/Notas%20sobre%20a%20teoria%20Ator-Rede.htm. Acessado em 15 de junho de 2012.
MAFFESOLI, Michel. O instante eterno. São Paulo: Zouk, 2003.
MARIA, Yanci Ladeira. Paisagem: entre o sensível e o factual. Uma abordagem a partir da geografia cultural (Tese em Geografia Humana). São Paulo: USP, 2010.
PAULA CARVALHO, José Carlos de. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico. São Paulo: Imago, 1990.
SODRÉ, Nélson Werneck. Memórias de um soldado. São Paulo: Civilização Brasileira, 1967.


[1] Regulamento de Uniformes do Exército (RUE). Portaria Ministerial nº 806, de 17 de dezembro de 1998.
[2] “Art. 3º do RUE: Constitui obrigação de todo militar zelar por seus uniformes, pela correta apresentação de seus subordinados e dos que lhe são de menor hierarquia” (Acessível em: http:// www.sgex.eb.mil.br/Rue%20web/ FRAMES.htm)
[3] “Garança” é uma referência à cor vermelho escura da boina, remetendo à planta trepadeira da família das rubiáceas, outrora cultivada no sul da França por sua raiz, que fornece uma substância tintorial vermelha.
[4] Quero dizer que essa “materialização” acontece indo além da racionalidade puramente cartesiana. Antecipando a participação de GUMBRECHT (2010), que investiga a experiência não conceitual que fazemos do mundo, atribuindo estatuto epistemológico às nossas vivências não cobertas pela hermenêutica, participação esta que terá mais espaço nas próximas etapas deste trabalho, quero chamar a atenção para o conjunto de ações não ditadas pela eficácia desencantada da racionalidade, mas que servem a uma “produção de presença” (GUMBRECHT, 2010) que é fundamental para a instituição militar.
[5] Penso em “montagem” ou “montação” no sentido mesmo dos sujeitos que se preparam para partilhar / viver as festas punk, raves ou clubbers. Ao mesmo tempo, vejo que será necessário demarcar diferenças fundamentais entre a “montação” (vamos dizer, civil) de quem adere aos códigos desses grupos, e a “montação” – militar – que se pretende compulsória e muito mais regulada, porém acaba permitindo reinterpretações sutis no âmbito dos alunos, justamente porque os mesmos não são militares, de fato.
[6] Colaboram para o surgimento do 2º pensamento, o “sobre a paisagem”, tanto a superação de certa doutrina cristã, segundo a qual olhar para a paisagem era ruim, porque correspondia a olhar para fora (‘Deus está em nosso coração, portanto o Homem deve olhar para dentro de si’, dizia Santo Agostinho), quanto a ascensão de certa classe ociosa de pessoas, as quais, não precisando interagir com a natureza para dela extrair seu sustento – tinham quem o fizesse para elas –, podiam pensar sobre esta natureza (BERQUE apud MARIA, 2010, p. 26 – 27). 
[7] Nos quartéis, de modo geral, o “Corpo da Guarda” é a instalação onde permanecem os militares para a segurança do aquartelamento. Esta atividade é um “serviço de escala”, ou seja, um tipo de plantão periodicamente designado. Conforme afirma FIGUEIREDO e FONTES (1958), a edificação que mencionamos aqui sempre teve esta destinação.
[8] Nas escolas militares, o “Corpo de Alunos” (assim como, na Academia Militar das Agulhas Negras – AMAN –, o “Corpo de Cadetes”) designa uma instituição dentro da instituição. Esta reunião dos discentes possui normas e regulamentos próprios, possui código de ética (sobre a finalidade desta característica, ver: CÂMARA, 2011) e representa o órgão responsável pelos alunos dentro do Colégio. No caso da pequena construção a que nos referimos, a “Secretaria do Corpo de Alunos” se assemelha à secretaria de qualquer escola, tendo por função prestar a primeira atenção aos pais e demais responsáveis que procuram a escola.
[9] FREIRE, Fábio Facchinetti. O silêncio das palmeiras imperiais. Um estudo socioantropológico sobre o Colégio Militar do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Educação. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2007. 
[10] Esta é uma expressão do léxico militar: qualidade de quem guerreia, de quem é belicoso; qualidade do que é militar.
[11] A Secretaria Geral do Exército (SGEx) é o órgão responsável pela expedição das normas que regem as cerimônias no âmbito dessa Força. Estas normas compõem os “Vade-Mecum de Cerimonial Militar do Exército”.
[12] Sobre o “espírito militar” e seu desenvolvimento nas escolas militares ver, dentre outros, CASTRO (1990).
[13] A AMAN viabilizou, pelo tamanho de seu terreno, uma “monumentalidade” que não era viável nas instalações anteriores destinadas à formação de oficiais: Academia Real Militar; Escola Central; Escola Militar da Praia Vermelha; Escola Militar de Realengo...
[14] Os demais alunos (os “mais antigos”) usavam o uniforme 4ºA CM. O uso deste uniforme denota uma distinção em relação ao 3ºB CM, que é de uso cotidiano. A diferença entre os dois está na calça, que é vermelha (garança) no 4ºA CM e bege no 3ºB CM.
[15] Militares não trabalham nos lugares, mas “servem neles”. Outra referência que posso evocar como testamento do vínculo patriótico, sendo Pátria, aqui – como expliquei antes – mais do que Nação, por conta dessa simbiose ecossimbólica. “Servir”, aí, reforça uma relação que não subordina o lugar à pessoa, mas, ao contrário, a pessoa (o militar que serve) ao lugar (a Pátria, que é servida).
[16] O Manual de Campanha C 22-5 (2000) destinado à regulamentação da Ordem Unida no âmbito do Exército, a caracteriza “(...) por uma disposição individual e consciente altamente motivada, para a obtenção de determinados padrões coletivos de uniformidade, sincronização e garbo militar. Deve ser considerada, por todos os participantes – instrutores e instruendos, comandantes e executantes – como um significativo esforço para demonstrar a própria disciplina militar, isto é, a situação de ordem e obediência que se estabelece voluntariamente entre militares, em vista da necessidade de eficiência na guerra”. E fixa como dois de seus objetivos: “a. Proporcionar aos homens e às unidades, os meios de se apresentarem e de se deslocarem em perfeita ordem, em todas as circunstâncias estranhas ao combate”. e “b. Desenvolver o sentimento de coesão e os reflexos de obediência, como fatores preponderantes na formação do soldado”. 
[17] Uma “companhia” (Cia) é uma fração do Corpo de Tropa; em mais uma das analogias com a organização castrense, os alunos dos Colégios Militares, para fins de gestão escolar, são distribuídos em “Companhias de Alunos” vinculadas aos seus anos letivos. 
[18] Disponível, na internet, em: www.youtube.com/watch?v=ByJibz2PFh8
[19] A continência é o principal sinal de respeito convencionado pelos militares, estando descriminada no “Regulamento de Continências, Honras, Sinais de Respeito e Cerimonial Militar das Forças Armadas”, aprovado pela Portaria Ministerial nº 660, de 19 de maio de 2009, do Ministério da Defesa. Este documento estabelece, em seu artigo 2º, que “Todo militar, em decorrência de sua condição, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas, estabelecidos em toda a legislação militar, deve tratar sempre: I - com respeito e consideração os seus superiores hierárquicos, como tributo à autoridade de que se acham investidos por lei; (...)” e, no rol das manifestações (artigo 3º), a continência figura em primeiro lugar.
[20] Nos manuais de Ordem Unida é possível aprender que a continência se compõe de atitude, gesto e duração. Atitude é a intencionalidade que move quem presta: não pode ser indolente, relaxado, mas sempre vigoroso, másculo (olha aí uma questão de gênero); gesto é a mecânica em si do movimento: mão espalmada, dedos unidos, uma linha reta do cotovelo à ponta dos dedos. Duração é o tempo do cumprimento: ainda que não definido, este tempo não é tão curto que a saudação não seja identificada, nem tão longo que ela se descaracterize.
[21] LATOUR, Bruno. Não há mundo comum: é preciso compô-lo. Disponível em: http://flanagens.blogspot.com.br/2014/ 06/nao-ha-mundo-comum-e-preciso-compo-lo.html?show Comment=1403798712683
[22] O endereço homenageia a memória de um aluno morto – possivelmente com uma estocada de compasso – em uma das tradicionais brigas estudantis entre membros do Colégio Militar e da Escola Técnica. Eram famosas, também, as brigas com alunos do Colégio Pedro II, ainda que não com os discentes da filial sita na mesma rua, mas com os membros da matriz localizada na Rua Marechal Floriano, 80, Centro.
[23] Acessado no endereço: https://www.google.com.br/maps/@-22.916357,-43.227002,3a, 75y,20.14h,86.05t/data= !3m4!1e1!3m2!1sP5utb7TShSo0mraNl-1OPA!2e0!6m1!1e1?hl=pt-BR, em 26 de maio de 2014.
[24] No endereço eletrônico http://www.sgex.eb.mil.br/index.php?option=com_content&view=article&id=34&Itemid=53, é possível acessar diversos regulamentos sobre o cerimonial militar, inclusive uma série de encartes denominados “Uniformização de procedimentos”, contendo recomendações do comando da Força sobre o comportamento nestas atividades.
[25] Apesar dessa data, o Colégio festeja seu “aniversário” no dia de sua primeira aula: 6 de maio. 
[26] Esta particularidade merece um maior esclarecimento. Em mais uma emulação do meio militar, os Colégios Militares atribuem postos (coronel, tenente-coronel, major, capitão e tenente) e graduações (subtenente, 1º sargento, 2º sargento, 3º sargento e cabo), que são distribuídos como premiações pelo mérito intelectual aferido nas provas escolares. Estas titulações (chamadas genericamente por graduações) estão vinculadas aos anos letivos, de tal forma que cada Colégio Militar só pode ter um coronel-aluno, que exerce este posto no terceiro ano do Ensino Médio, como prêmio pelo primeiro lugar ao fim do segundo ano do Ensino Médio.
As graduações são apostas nos uniformes (na lateral dos braços, de cabo a sargento, e sobre os ombros, até coronel), servindo a mais uma distinção dentro da distinção: dentre aqueles que são distintos como alunos de um Colégio Militar, existem os que são diferenciados em uma hierarquia militar mimetizada. Foge ao escopo deste trabalho esmiuçar, nesta oportunidade, os reflexos dessa estratificação no relacionamento dos alunos. Para o momento, interessa sublinhar sua existência e que sua distribuição é motivo de mais uma cerimônia que, no ano de 2014, foi realizada em uma sexta-feira, 28 de março.
[27] Esta diferenciação entre o caráter de unidade, uniformidade e conjunto que representa qualquer tropa, quando, em forma, executa aquelas atitudes características da Ordem Unida, e o caráter fluido, polimorfo e indistinto que o mesmo público representa quando “fora de forma”, fica bem marcada na denominação que, metaforicamente, designa uma tropa formada: “tijolo”. Mesmo a palavra “dispositivo”, que, na tese da qual este trabalho faz parte, assume um significado muito específico, dentro do léxico militar serve para designar o local aonde a tropa se posiciona, quando em forma, contribuindo para essas indistinção e impessoalidade que as pessoas passam a carregar, quando da lógica das formaturas. Um “dispositivo” – não esqueçamos, por fim – é uma prescrição, um mecanismo, uma norma, uma ordem. 
[28]Consta que o então Tenente Japyr, instrutor de Educação Física e preparador das equipes esportivas do Colégio Militar do Rio de Janeiro, em 1928, durante o treinamento do time do futebol para o campeonato colegial, convidou alguns alunos a criarem um grito de guerra para estimular o grupo. Foi criada uma sequência de palavras, sem ordenação poética ou sentido explícito. A partir de então e com o uso contínuo, o grito tornou-se hábito e regra”. Esta é a versão mais consistente sobre a criação da saudação colegial e a veiculada pela DEPA. No fim dos anos 1990, durante a gestão do General de Brigada César Augusto Nicodemus de Souza, responsável pela nacionalização de vários costumes nativos dos Colégios Militares mais antigos (Rio de janeiro, Porto Alegre e Fortaleza), em um processo de “invenção das tradições” (HOBSBAWN e RANGER, 2012), o grito de guerra é instituído para as doze unidades do sistema, com a redação transcrita acima. Em suas “Memórias de um soldado” (1967), o General Nélson Werneck Sodré, aluno de 1924 a 1930, registrou o que seria um “antepassado” da saudação colegial: “A manifestação coletiva costumeira era o zum. Quando, no refeitório, o copeiro desajeitado deixava cair um prato, que se espatifava no ladrilho com barulho engrandecido pelo silêncio dos alunos, proibidos de falar, centenas de meninos, de boca fechada, faziam zum pelo nariz, e o zumbido ora crescia, ora baixava – e todos silenciosos, de olhos nos pratos, comendo. Acontecia, às vezes, qualquer coisa numa sala de aula ou de estudo, e era impossível saber o responsável; quando colocavam o problema, todos se acusavam” (p.13). Outros educandários do período registram gritos de guerra com a mesma função e durabilidade, como é o caso da “Tabuada” do Colégio Pedro II: Ao Pedro II, tudo ou nada? / Tudo! / Então, como é que é?/ É tabuada! / 3 x 9, 27 / 3 x 7, 21 / menos 12, ficam 9 / menos 8, fica 1 / zum, zum, zum / paratibum / Pedro II!”
[29]O primeiro carneiro foi doado ao Colégio Militar do Rio de Janeiro pela senhora Celina Vairão Branco em 1922, seu nome era Xiba. Desde então, um carneiro passou a ser a mascote e a acompanhar as formaturas, sempre conduzidos pelos alunos mais jovens”. Esta é a versão hoje aceita para a adoção do carneiro, cuja presença e função nas formaturas foi instituída para todo o SCMB pelo General Souza, em seu período de gestão frente à DEPA.
[30] Mas o caso geral que é enfatizado pela teoria do ator-rede é esse: se os seres humanos formam uma rede social, isso não é porque eles interagem com outros seres humanos. É porque eles interagem com seres humanos e com muitos outros materiais também (...). E esse é o meu ponto – se esses materiais desaparecessem também desapareceria o que às vezes chamamos de ordem social. A teoria do ator-rede diz, então, que ordem é um efeito gerado por meios heterogêneos” (LAW, 2012).